terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Insustentável sustentabilidade, por Marjorie Rodrigues

Muito bom o texto. Mostra o que eu penso sobre sustentabilidade. Boa essa Marjorie Rodrigues, hein.

Ano passado, fui a um evento em que várias bandas nacionais e internacionais se apresentaram numa fazenda no interior de São Paulo. Para assistir aos shows, era necessário comprar um ingresso que custava, se não me falha a memória, trezentos reais. Isso para ficar a vários metros de distância dos palcos. Quem quisesse ver as apresentações de perto, num cercadinho chamado de área VIP, teria de pagar o dobro. É mais do que o atual salário mínimo brasileiro, de R$510. Lá dentro, a água custava 6 reais, a cerveja uns oito. O evento foi patrocinado por quatro empresas: duas multinacionais do ramo de bebidas, uma multinacional do ramo de alimentos e uma nacional do setor de telefonia.

Tem toda a cara de um festival de música como outro qualquer, voltado para consumidores de classe média/alta, certo? Errado. Segundo os organizadores e os patrocinadores, o que estava acontecendo não era um show, bobinho, era um movimento social pela conscientização ambiental, chamado “starts with you” (começa com você). Oi? Movimento social. Tipo o feminista, o negro, o indígena e o sem-terra, sabe? Mesma coisa.

Uma das multinacionais do setor de bebidas que patrocinaram o evento foi multada em 47 milhões de dólares por poluir lençóis freáticos na Índia. Ela produz uma bebida com 18 colheres de açúcar a cada dois litros. Apenas uma de suas usinas de engarrafamento no Brasil é capaz de produzir 27 mil garrafas por hora. Outra das patrocinadoras engarrafa milhões de litros de água mineral, mesmo que muitos governos locais já tratem a água e a ofereçam gratuitamente aos cidadãos (e sem garrafa). Para competir com a água tratada e gratuita nos países onde ela é disponível, a propaganda classifica a água engarrafada como “mais confiável”, o que nem sempre é verdade.

Entretanto, nos telões do festival, ambas as empresas alardeavam sua preocupação em manter operações sustentáveis, na medida em que reciclam e/ou reutilizam parte das garrafas PET desnecessárias que produzem. A mensagem era clara: “já estamos fazendo a nossa parte, agora faça você a sua. Starts with you! Feche a torneira ao escovar os dentes, desligue os aparelhos eletrônicos da tomada quando sair de casa e seja um consumidor consciente”. E, com "consumidor consciente", lá vem a mensagem subliminar: “ao comprar um refrigerante de uma empresa responsável como a nossa, você está ajudando o planeta. Não compre dos outros, compre da gente!”.

Nesta semana, em São Paulo, a maior editora de revistas do Brasil promove, pelo quarto ano consecutivo, um evento de sustentabilidade. A mensagem é a mesma do SWU: feche a torneira, faça xixi durante o banho, use os dois lados da folha sulfite, apague a luz. Decorando o evento, esculturas de papelão feitas com as bobinas que envolvem os rolos de papel utilizados na fabricação das revistas. E aí as pessoas vão passeando por ali e pensando “uau, que legal! Um material que normalmente seria jogado fora serviu para produzir algo belo!”.E eis que a editora de revistas se sai como uma puta empresa bacana. Mas ninguém pára para pensar, afinal, para quê todas aquelas bobinas de papel sequer foram produzidas. Ninguém se faz aquela perguntinha do Caetano: quem lê tanta notícia? A humanidade precisa mesmo de tanta revista? Pra quê tanto papel para falar dez mil vezes a mesma coisa? Não parece um contrassenso pagar de gatinho da sustentabilidade reciclando e reutilizando toneladas de papel que foram usados, principalmente, para estimular o consumo? Afinal, hábitos de consumo são a principal coisa vendida por esse tipo de veículo em particular, a revista.

Citei esses dois exemplos, mas poderia citar outros vários. Cada vez mais empresas, de todos os ramos do mercado, têm se apropriado do discurso da sustentabilidade ou patrocinado eventos de “conscientização”. E isso não é à toa. Nada mais insustentável do que o discurso da sustentabilidade. Trata-se de um discurso deliberado de alienação, que foca a resolução da questão ambiental sobre as nossas pequenas ações cotidianas e não sobre a raiz a ser extirpada: o modelo de produção e consumo vigente. É claro que nossas pequenas ações cotidianas têm sim seu peso (ninguém está dizendo que fechar a torneira enquanto escovamos os dentes é uma coisa ruim), mas vamos combinar: não somos nós que jogamos milhões de litros de óleo no Golfo do México. Não somos nós que poluímos ar e água com substâncias cancerígenas. Não somos nós os responsáveis por socar partículas de sacolinhas e garrafas PET no bucho dos animais marinhos. Então, não é à toa que tantas empresas que nunca deram a mínima para o meio-ambiente de repente tenham virado sustentáveis desde criancinha. Não é à toa que o nome do tal festival, ou melhor, do “movimento social”, é starts with you. Começa aí com você, seu trouxa. Afinal, enquanto a gente fica aqui criando consciência, as grandes empresas, responsáveis pelo grosso do problema, ganham tempo. Adia-se mais um pouco o debate sobre a sociedade de consumo que construímos.

Outro problema desse discurso da sustentabilidade, tão em voga, tão na moda, é que ele nos convida a ser benevolentes com o planeta, quase como se estivéssemos lhe fazendo um favor: “salve a planeta! Salve os ursos polares! Salve as florestas!”. Meu filho, a questão é salvar a nós mesmos. É o nosso que tá na reta. O planeta se vira sem a gente. Se isso aqui virar tudo uma grande sauna inabitável, o planeta continua existindo. Numa boa. Como todos os outros planetas inabitáveis universo afora. Não é a Terra que vai se foder (pode palavrão aqui, Idelber?), é você. Você.

O terceiro (e, muito provavelmente, não o último) problema desse discurso é que ele limita a nossa esfera de ação ao consumo. O único poder das pessoas de salvar o planeta (e não a si mesmas) é enquanto consumidoras, nunca enquanto cidadãs, nunca através do fazer político. Enfiamo-nos nessa enrascada consumindo e consumindo sairemos dela. É apenas uma questão demudar o jeito como se consome, tornando-se um consumidor “responsável”. Mas o que é ser um consumidor responsável? Ora, é consumir na mesma quantidade e das mesmas empresas de sempre (como as patrocinadoras do SWU...), só que com a consciência tranquila porque as empresas estão reciclando uma coisinha aqui e ali, utilizando circuito fechado de água numa fábrica aqui, noutra ali. Ah, e enquanto você consome uma coisa e outra, apague a luz.

Mas devo chamar atenção para uma coisinha mais. É que muitas empresas inserem o pilar social no seu conceito de sustentabilidade. E aí, a meu ver, mora um grande, gigantesco perigo. Através de fundações e institutos associados ao terceiro setor, empresas privadas querem substituir o Estado, tomando para si atividades que devem ser de responsabilidade dele (como educação, saúde, combate à pobreza, etc). Ou então, sequestram o rótulo de sociedade civil e passam a dizer ao Estado quais são as necessidades das comunidades, o que deve ser feito e como. Essa do SWU assumir o rótulo de “movimento social”, por mais ridículo que pareça, é uma coisa que as fundações e institutos, associados ao terceiro setor, já têm feito há tempos. Aí, o próprio Estado passa a dar dinheiro a empresas privadas, para que o capital se encarregue de dar um tapa nas desigualdades que ele mesmo gera.

Por isso, desconfio de toda e qualquer empresa que vem com discurso sustentável para cima de moi. Não votei em Marina, por mais que simpatize com vários aspectos de sua biografia e atuação política, justamente por causa disso. Pode me chamar de comunista barbuda, mas a solução dos problemas gerados pelo capital não virá pelas mãos do próprio capital. Há uma óbvia incompatibilidade de interesses. A mobilização, querido, realmente starts with you: não são as empresas que têm de criar consciência na gente. É a gente que tem de criar consciência, coletivamente, sem mediação privada alguma. É a gente que tem de questionar o modo como se vive, a maneira como as coisas são produzidas e, a partir daí, peitar as empresas.


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